segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Fica por explicar

É frágil a linha que me separa de ti e do resto do mundo
Quase tão frágil como a linha que separa, no horizonte de tudo, o céu e a terra
Existe um ponto em que existimos em comum
Somos em comum
Logo depois tudo se transforma no pranto das imagens, visíveis
Fica por explicar quase tudo. E isso não tem preço!

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Bolota improvável

Sentado à sombra que a árvore fazia enquanto olhava para a linha que dividia o céu do resto do mundo visível, caiu-lhe no ombro uma bolota.

O cair não tinha sido voluntário, como o de uma coisa que cai de madura ou uma pessoa que se acaba, pelo menos para si própria, por se ter acabado o tempo.

Foi um pássaro que a levou a sofrer a gravidade, tomando o sentido do centro da terra. Não fosse ter batido no já referido ombro e, à parte também a existência de chão, aquele pequeno fruto, cheio de vida, ainda que em potência, tinha atingido o centro do mundo. Talvez até acabasse com ele… Nunca saberemos.

Não ficou perturbado. À semelhança do costume, seu pelo menos, aproveitou o incidente para pensar no Universo e extrapolou todas as leis da física a partir daquela inocente bolota.

Tivesse esta bolota consciência e talvez ficasse magoada com tanta atenção e responsabilidade, impostas por tão simples e involuntário acto: cair por causa de um pássaro com fome.

Chegou àquela parte da equação em que se pergunta se a bolota tem alma.

Parou.

Esquecendo por completo a alma das bolotas, voltou a olhar para longe de si.

Foi então que reparou que, por mais longe que tentasse ver, nunca deixava de ver o seu nariz, diga-se, para esclarecer quem não o conhece, um farto nariz, de apurado sentido, com abas largas que se abrem quando chega a hora de saber de que é a sopa trazida por quem a sabe fazer, que não será ele, com toda a certeza.

Facto que o passou a atormentar. Não saber fazer sopa resolve-se, podemos sempre aprender com alguém que saiba, perguntar, ou ir tentando até se acertar… Ter o próprio nariz, sempre ( ! ), no campo de visão é que, de tão complicado, não se resolve.

Foi então que tomou uma decisão improvável. Cheirou a paisagem. A bolota assistia a tudo fazendo-se de adormecida nas ervas secas em que tinha caído. O pássaro já se tinha ausentado, coisas da vida, e a árvore lá estava , bem agarrada ao chão garantindo apoio às costas do que cheirava o mundo enquanto imaginava o que lá poderia estar se não fosse o seu nariz.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Nome

Perguntaram-lhe hoje o nome. Três vezes. Nome?!

“Existo encriptado
Cristal apurado do que penso
Bebo tudo só de um trago e adormeço”

Seguiu a sua viagem. Estrada de terra e ervas daninhas muito verdes.
O rio repousava ao fundo.

sábado, 16 de agosto de 2008

Cidade

A cidade já está farta de tudo.

Farta de cheia, de si, da merda de pássaro, das pessoas que passam inertes, embebidas no frio de consciência e dos corpos.

É a consciência colectiva a progredir no caminho que já adivinhavam os Deuses quando criaram tudo, conscientes de si e do resto, fartos de cheios, de si, da merda dos pássaros, dos momentos que passam inertes, embebidos no frio da consciência e dos corpos.

sábado, 5 de julho de 2008

Mais ou menos zero

O tempo ia passando, como se nada fosse. Como se isso não significasse um início de fim, como se não tivesse mesmo nenhuma importância…

Com o parar da idade vamos aprendendo, disse ele, enquanto somava para logo depois subtrair, no papel quadriculado que tinha à frente, tudo o que de tão insignificante não poderia nunca ter valor ( para ninguém! ).

O tempo continuava a passar, como se não fosse nada.

Já fiz as contas: o resultado é zero, mais ou menos zero, não sei bem, tenho dúvidas, talvez deva repetir isto noutra altura, pensou ele sem coragem de o dizer.

O tempo ainda passava quando acordou para tudo.

Porque estás mais velho meu caro amigo, perguntou ao cão.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Lá fora tudo igual

É mais ou menos meio-dia de um dia qualquer.

Tudo parece pacífico na casa que habita.

O rafeiro dorme no tapete da sala, a televisão está desligada, entra uma luz aconchegante de início de Verão. Adivinha-se uma tarde calma e quente. Não fosse o vizinho de cima estar a ouvir baladas dos anos 80 e apenas o silêncio possível se escutaria.

Resolve ir ler a paisagem para a varanda enquanto ouve o estalar do gelo no copo de whisky velho.

Lá fora tudo igual. A estrada de alcatrão ainda passa em frente ao prédio, as poucas árvores que existem não cresceram nada que se visse e a planície lá continua, já a acusar o amarelo e o vermelho impostos pelo calor das últimas semanas.

Resolve sentar-se na cadeira de plástico, que tem ao lado do vazo com a planta que não sabe o nome e se esquece, quase sempre, de regar. Hoje está murcha. As folhas começam a ficar castanhas nas pontas, o caule está um bocado torto e a terra em que está plantada parece seca de mais para suportar qualquer forma de vida. Vou regala mais logo, pensa, sabendo que o mais certo e esquecer-se.

É estranha a ausência de pessoas na rua, normalmente passa gente por aqui, mesmo ao início da tarde de domingo.

Saboreia um gole do néctar, arrefecido pela pedra de gelo, e observa o copo de vidro grosso já riscado.

A vizinha do terceiro esquerdo sai do prédio, com a dificuldade em andar típica de quem oitenta e tal e falta de paciência para correr. O “bom dia” surge-lhe com naturalidade, da mesma forma que o sorriso da vida resolvida lhe rasga o rosto enrugado.

Como vai a senhora, pergunta-se. Devagar menino, devagar…responde-se. Pois a mim parece-me que vai muito bem! E um sorriso, também resolvido, é devolvido.

A vizinha afasta-se lenta e decidida.

Mais um gole. Outro. Volta à memória a planta. Decide não adiar e rega-a. Enquanto o faz, um sentimento agradável toma conta de si, como se estivesse a fazer um bem imenso à Humanidade ao tomar conta daquele pequeno ser.

O calor aperta e volta para a sala. Baixa os estores até meio, deixando a luz entrar, e deita-se no velho sofá de cabedal castanho. O cheiro a pele do sofá recorda-lhe a infância toda enquanto o adormece tranquilo.

A tarde já vai a meio quando acorda. O copo caiu, em cima da alcatifa. Não se preocupa. Afinal está calor e aquilo é basicamente água e álcool, acabará por evaporar.

Recorda mal o sonho, sabe que nele entravam pessoas queridas e pouco mais. Nada de violento ou extremamente agradável que conseguisse recordar. Era ao ar livre, tipo um piquenique, havia água, talvez um pequeno lago com juncos…

Pega no copo caído na alcatifa, coloca-o em cima da pequena mesa da sala e vai à casa de banho. Enquanto lava a cara e tira as remelas que acusam o tempo dormido, nota-se mais velho, ligeiramente mais velho do que da última vez que reparou em si desta forma.

Decide sair de casa e nunca mais voltar. Seguir sem rumo, com a mala às costas e aproveitar tudo o mereça ser aproveitado: paisagens, fruta selvagem, plantas, conversas, ideias… Enfim, sente que nada o prende a este lugar e que quer mesmo partir. Faz a mala, atrela o cão e parte, só porque sim.

É já meia-noite quando regressa. Afinal isto das viagens não é assim tão bom, pensa. Faz frio quando não se dorme em casa e esqueci-me da minha almofada.

quinta-feira, 27 de março de 2008

O dia nasce

Finalmente o dia nasce
Ouve-se, ao fundo, a respiração ofegante
Afastam-se os fantasmas da noite mal dormida
Aprecia-se a luz que tranquiliza os males todos

Instalam-se as olheiras típicas
Segue-se o caminho que não estava traçado

A caminho da casa da infância
Começa a cefaleia do que foi
Persiste o inchaço da vista

Agora o Sol domina tudo
Adormeço fantasma de mim

quinta-feira, 13 de março de 2008

Miopia

Perco-me em paisagens que crio e destruo
Tudo para me distrair daquilo que não sou e me afecta
Aconteço sem ser eu e isso perturba a visão
Deixo-me absorver pelas saídas de emergência
Caminho pelas calçadas da existência
Perco-me nos atalhos que julguei conhecer

Afundo o barco onde vou só para poder sair
Enquanto isto, sinto-me vivo: é a aflição da falta de vida

Acelera-se o passo
Impossível ( ! )
Não posso escapar de mim

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Viagem de quem vai ficando

E tudo se transformou

A explosão não fez mortos, diziam na rádio, enquanto se preparava para sair.
Só feridos graves e ligeiros, grandes feridas abertas nos corpos e nas almas de quem assistiu ao propagar das chamas.

Tomou depois o café na mesa da cozinha e comeu uma torrada com doce.

Enquanto seguia, no autocarro de sempre, observava um homem, velho, a olhar a paisagem cinzenta como se fossem flores vermelhas. Era evidente a sua vontade de sair dali, tal como era evidente a sua falta de coragem para o fazer. Todos os dias desde que mudara para aquele prédio o via: a mesma cara, no mesmo lugar, o mesmo olhar, cheio de vazio…

Chegou ao destino.

PAUSA.

De regresso a casa, para junto de quem estava à espera, não encontrou o homem velho do costume. O lugar tinha ficado vago. Na esperança de perceber o que ia na alma do homem velho, decidiu sentar-se no banco dele e olhar pela mesma janela.

A mesma paisagem, a mesma cor, sensações diferentes…


Tudo tinha mudado. O homem velho tinha-se libertado de tudo, até do lugar no autocarro.
Agora aquela prisão era sua…

No telejornal repetiu-se a história de explosão. O Benfica tinha empatado. O ministro não caiu. As guerras eram as mesmas. O homem velho tinha sido visto a voar, com asas grandes e plenas, em direcção ao sul.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Andando

Enquanto se for andando, sem compromissos nem vontade de chegar a lado nenhum, podem ver-se as coisas mais pequenas com uma nitidez impossível de outra forma.

Isto das viagens tem os seus truques. Uns mais honestos e claros outros íntimos e insondáveis, até para quem os tem… No fundo disto tudo o que importa não é o rumo.

São as pedras e pó da estrada que dão sentido à viagem.

Quando se parte por nós, vasculha os recantos e viola a intimidade, tudo o que sobra é o que se foi vendo.

No fim só vão sobrar as viagens, melhor, as memórias das viagens. As fotografias que fomos tirando hão-de amarelecer e ficar desfocadas. Fica a sensação em forma de memória e tudo o resto não faz falta.