sexta-feira, 9 de maio de 2008

Lá fora tudo igual

É mais ou menos meio-dia de um dia qualquer.

Tudo parece pacífico na casa que habita.

O rafeiro dorme no tapete da sala, a televisão está desligada, entra uma luz aconchegante de início de Verão. Adivinha-se uma tarde calma e quente. Não fosse o vizinho de cima estar a ouvir baladas dos anos 80 e apenas o silêncio possível se escutaria.

Resolve ir ler a paisagem para a varanda enquanto ouve o estalar do gelo no copo de whisky velho.

Lá fora tudo igual. A estrada de alcatrão ainda passa em frente ao prédio, as poucas árvores que existem não cresceram nada que se visse e a planície lá continua, já a acusar o amarelo e o vermelho impostos pelo calor das últimas semanas.

Resolve sentar-se na cadeira de plástico, que tem ao lado do vazo com a planta que não sabe o nome e se esquece, quase sempre, de regar. Hoje está murcha. As folhas começam a ficar castanhas nas pontas, o caule está um bocado torto e a terra em que está plantada parece seca de mais para suportar qualquer forma de vida. Vou regala mais logo, pensa, sabendo que o mais certo e esquecer-se.

É estranha a ausência de pessoas na rua, normalmente passa gente por aqui, mesmo ao início da tarde de domingo.

Saboreia um gole do néctar, arrefecido pela pedra de gelo, e observa o copo de vidro grosso já riscado.

A vizinha do terceiro esquerdo sai do prédio, com a dificuldade em andar típica de quem oitenta e tal e falta de paciência para correr. O “bom dia” surge-lhe com naturalidade, da mesma forma que o sorriso da vida resolvida lhe rasga o rosto enrugado.

Como vai a senhora, pergunta-se. Devagar menino, devagar…responde-se. Pois a mim parece-me que vai muito bem! E um sorriso, também resolvido, é devolvido.

A vizinha afasta-se lenta e decidida.

Mais um gole. Outro. Volta à memória a planta. Decide não adiar e rega-a. Enquanto o faz, um sentimento agradável toma conta de si, como se estivesse a fazer um bem imenso à Humanidade ao tomar conta daquele pequeno ser.

O calor aperta e volta para a sala. Baixa os estores até meio, deixando a luz entrar, e deita-se no velho sofá de cabedal castanho. O cheiro a pele do sofá recorda-lhe a infância toda enquanto o adormece tranquilo.

A tarde já vai a meio quando acorda. O copo caiu, em cima da alcatifa. Não se preocupa. Afinal está calor e aquilo é basicamente água e álcool, acabará por evaporar.

Recorda mal o sonho, sabe que nele entravam pessoas queridas e pouco mais. Nada de violento ou extremamente agradável que conseguisse recordar. Era ao ar livre, tipo um piquenique, havia água, talvez um pequeno lago com juncos…

Pega no copo caído na alcatifa, coloca-o em cima da pequena mesa da sala e vai à casa de banho. Enquanto lava a cara e tira as remelas que acusam o tempo dormido, nota-se mais velho, ligeiramente mais velho do que da última vez que reparou em si desta forma.

Decide sair de casa e nunca mais voltar. Seguir sem rumo, com a mala às costas e aproveitar tudo o mereça ser aproveitado: paisagens, fruta selvagem, plantas, conversas, ideias… Enfim, sente que nada o prende a este lugar e que quer mesmo partir. Faz a mala, atrela o cão e parte, só porque sim.

É já meia-noite quando regressa. Afinal isto das viagens não é assim tão bom, pensa. Faz frio quando não se dorme em casa e esqueci-me da minha almofada.