sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Francisco

Apesar de gasto pelo relógio que teima em marcar as horas do tempo, que, diga-se de passagem, não existe, ele continua. Está velho, quase arrasta os pés na estrada de terra batida que o leva da sua casa ao campo que trabalhou, desde a idade de sete anos, por ordem e necessidade de seu pai. Todos os dias o visita. Agora é apenas um baldio, coberto por ervas e plantas espontâneas, a que se deu uso chamar daninhas só porque aparecem onde lhes apetece, sem responder a necessidades de quem é dono e senhor dos terrenos. Ainda assim, gosta de o visitar e lembrar o que tinha sido a sua vida de miúdo, rapaz, homem, homem marido, homem pai e homem avô. Ali, no campo agora baldio, tinha sentido pela primeira vez os lábios de Carolina. Haviam apenas passado doze anos desde que abrira os olhos pela primeira vez, para ver sua mãe com o peito descoberto a agradecer a Deus ter leite para o menino, uma vez que na sua ausência, nada mais haveria para o alimentar. Doze anos. Sentiu, porque recordou e a sua memória não permite apagamentos, a felicidade que sentira ao tocar os lábios daquela que acreditava vir a ser sua mulher. O correr das águas da ribeira que ladeava a sua aldeia, se é que se pode chamar aldeia a três dezenas de casas e uma igreja, veio a provar que a vida não é como se sonha, é como é. Já tinha vinte anos e o desgosto de sua mãe por não o ver casado estava prestes a acabar. Conhecera Maria. Tinha vindo, ela, de fora da aldeia para trabalhar no campo do senhor que era dono dele, a troco de quase morrer à fome, com dezoito anos de idade. Foi aí que os seus olhares se cruzaram pela primeira vez, no meio do calor quase insuportável, do pó dos cereais e das dores que o corpo tinha. Não se pode dizer, porque não é verdade, que foi o olhar que aliviou tudo. Foi antes o repetir do cuidado com que se tratavam, do sorriso de Maria, do corpo de mulher de Maria, dos desejos de ambos e da vontade que não se controla. Quando o trabalho ficou feito, por não serem precisos mais cuidados à seara e o senhor dono das terras ter satisfeitas as suas necessidades de mão-de-obra que não podia humanamente satisfazer sozinho, Maria preparava-se para voltar a casa de seu pai. Percebeu que não podia, quando acordou, três dias antes da partida, e a náusea se instalou sem motivo aparente. A noite em que se deixara levar pela luz da fogueira e pelo olhar de Francisco, tinha produzido mais que suor e prazer. António, baptizado com o nome de seu avô paterno, viria a nascer passados oito meses e meio, já devidamente casados seus pais, Francisco e Maria, como mandam as regras de honra e como mandou também o pai de Maria. Quase tudo o que se passara na vida de Francisco tinha acontecido no espaço entre a aldeia e o campo do senhor que era dono dele. De excepção servem as raras idas à cidade de Beja, para visitar seu irmão que por ali se tinha instalado, depois de começar a trabalhar na fábrica de cortiça que também era do senhor dono do campo. Não sentia necessidade de sair ou ver outras terras e gentes, para si, conhecia o mundo, e isso chegava. Tal como hoje, apoiado no cajado a olhar o campo, passara a vida a olhar as coisas todas. Primeiro Carolina, depois Maria, depois António, sempre trabalho e trabalho e trabalho, sorrisos, choros, vento, pássaros, até já não saber onde acabava ele próprio, Francisco, e começava o resto. Até ter a noção que existia e era tudo o que via, tudo o que fora, tudo o que sentira. De regresso a casa, onde Maria o espera para jantar e donde António e seus dois irmãos já saíram há mais de dez anos para tentar fazer vida na cidade grande, beija sua mulher na testa e diz sorrindo: “acho que enlouqueci, sinto-me dono de mim e de tudo quanto fiz.”

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

E DAÍ?

Daqui, tudo parece calmo
E daí?
Daqui, os tumultos calaram-se
Ávidos de respostas que não existem
E daí?
Daqui, aceitou-se o que se via
Apenas porque existe
Apenas porque se vê
E daí?

domingo, 29 de novembro de 2009

A coisa disse

A coisa chegou numa coisa que parecia um barco voador.

A porta da coisa tinha sido aberta com grande estrondo apenas uns segundos antes de a coisa se fazer ver.

A coisa que vinha da coisa que parecia um barco voador disse: “TENHO A RESPOSTA A TODAS AS VOSSAS DÚVIDAS, AS EXISTENCIAIS E AS OUTRAS”.

Nisto, desceu por uma coisa que parecia uma corda e dirigiu-se aos que observavam a coisa que parecia um barco voador, há mais de uma semana, sem que percebessem o que era.

Todos aguardavam o discurso, boquiabertos, a olhar a coisa. E foi então que a coisa disse: “GRHUNDFTIZPAR, PERCEBERAM?”

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Ganga

O rapaz de calças de ganga sujas de terra das sucessivas quedas, caminha, com a mochila cheia de livros com letras impressas que ainda não sabe perceber, em direcção à escola.

Sentado na carteira, ao lado de quem lá está, também sentado, ouve com a desatenção que o discurso merece, os sons repetitivos que jorram da personagem ao pé do quadro preto com o giz branco na mão. Preto no branco, tudo se mantinha em silêncio, nos símbolos imóveis apresentados com a verdade suposta que alguém construiu.

No intervalo, chamado assim porque depois se retomaria o processo e agora era tempo para a pausa, olhava a rapariga sentada em cima do muro baixo que dividia, inutilmente por falta de altura, dois espaços que eram o mesmo. Sonhava, a rapariga, ao olhar para o pátio, com o que estava a ver. Sonhava enquanto via.

O rapaz, menino, nesse momento foi o menino, ao ter a lucidez da queda que sucederia ao sonho da rapariga, mulher, correu na sua direcção para amparar a queda inevitável após o despertar.
Inútil movimento e desperdício de energia. A rapariga sujou, pela primeira vez, as suas calças.

sábado, 31 de outubro de 2009

Rio antigo

Sentado nas escadas cobertas de folhas caídas de vidas passadas
Senti o rio antigo vivo ao fundo da paisagem
Não era bem ao fundo, havia mais para lá do rio, em profundidade.

O resto são sobras fúteis.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

um dois três. som. experiência.

O dai nasceu especial.

Conseguia ouvir-se tudo, até as plantas a crescer…

O desenho animado que imaginara apareceu-lhe, em carne e osso, quando saia de casa. Cara pequena, doce, a olhá-lo de frente entre um suspiro de gaivota e o passar do eléctrico.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Há muito tempo

Já passava das três da manhã quando sentiu o muro de cimento que lhe ladeava o corpo todo. Não há fuga a isto, pensou.
Subitamente, um pouco por cima do estômago mas ainda abaixo dos pulmões, sentiu uma fresca angústia que nunca havia sentido.
Tudo mais confuso, cada vez pensava mais na prisão estúpida em que se encontrava, deixando o pânico e o desespero tomar conta de si.
Desistiu de pensar. Não foi uma decisão, foi uma imposição da sobrevivência.
Tudo o que lhe restava era o instinto, e esse mandava-o sentir o fresco que vinha de dentro.
Seguiu-a em direcção ao fundo onde todos somos iguais, e, com o corpo ainda preso, libertou-se como nunca tinha conseguido.